Julgamento
Sete são os anos que me separam da minha irmã.
Lembro-me de ela me dizer, quando eu era mais miúda e a escutava como minha mentora (típico de irmã caçula), para não ser tão ingénua e não confiar sempre nas boas intenções de quem me rodeava. Para me preparar para o constante julgamento alheio, gratuito e, muitas vezes, injusto. Para relativizar quando fosse vítima desse julgamento.
Aqueles conselhos deixavam-me perplexa e muito, mesmo muito, indignada. "Que descrença na bondade dos outros", pensava eu. "Que perda de fé na humanidade".
Hoje, já mais crescida, mais vivida e depois de alguns "tratamentos de choque", questiono-me, não se ela teria razão, mas qual o motivo para assim o ser.
"Sabes, houve quem achasse que deram mais atenção aos animais ao exibirem um vídeo mais longo do que o das crianças; que os animais não deviam ter sido tratados com mais importância" - dizia-me um convidado do nosso casamento, a propósito dos vídeos que exibimos sobre as duas associações que decidimos apoiar - a Aldeia de Crianças SOS e a DARP.
Depois de ouvir atentamente este desabafo, os meus olhos dilataram, tal e qual um gato, prestes a caçar a sua presa, e o meu sangue ferveu. Pelo menos, eu senti-me muito mais cálida por dentro. No estômago, nas mãos, na face. Toda eu, um vulcão, a eruptir.
Indignada, porque aqueles convidados, cuja identificação preferi nem saber, eram a prova irrefutável da tese da minha irmã, que, como em muitas outras coisas, tinha razão.
O que se passará nas nossas vidas para nos atirarmos de cabeça, muitas vezes inconscientemente, para o julgamento depreciativo, destrutivo? Para tendermos de imediato para a crítica fácil, trocista ou preconceituosa? Que tendência é esta?
Será, pergunto eu, que aqueles desiludidos convidados não nos ouviram explicar que o dito vídeo havia sido preparado pela própria associação de animais que, de forma caseira, muito amavelmente investiu o seu tempo para aquele feito, quando a isso não era obrigada?
Ora, se um vídeo não é da nossa autoria, como podemos nós ser condenados pela sua dimensão? E como podem essas pessoas considerar (grande salto à "Mamona") que assim sucedeu porque valorizamos mais os animais do que as crianças? Enfim! Que trapalhada!
Este pequeno e simples exemplo, de assunções negativas, que em nada acrescentam e que ecoam no tempo por entre conversas de café (que, agora, foram substituídas por monólogos nas redes sociais) e que vão sendo alimentadas graças ao já por todos conhecido "efeito dominó" de línguas afiadas, leva-nos a condenar os outros, sem critério nem pudor.
Podemos relativizar? Podemos, e somos mais felizes se o fizermos, mas temo que com o tempo o relativizar se transforme numa aceitação tácita destes fenómenos.
Isto é perigoso, corrói-nos a todos. Esquecidos de que os outros são seres humanos, tal como nós. Tenhamos cuidado, estejamos atentos, sejamos mais empáticos. Mais simples ainda: não cedamos à tentação de informar o mundo sobre este tipo de pensamentos que em nada acrescentam e que, na verdade, ninguém pediu. É que isto de estar constantemente atento à falha de alguém, "a postos” para a crítica afiada, não fortalece nem vitaminiza nenhuma alma.
Provavelmente Rousseau tinha razão: O homem nasce bom, é a sociedade que o corrompe.
(...)
E depois de todos estes pensamentos envoltos em revolta, eu própria me questiono: na verdade, não estarei, também eu, a precipitar-me no julgamento?